Jorge Teixeira da Cunha: “A vida com os alunos é o melhor que se pode ter.”

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Jorge Teixeira da Cunha nasceu em Sendim, em Felgueiras, em 1958 e é docente e investigador da Faculdade de Teologia do campus da Universidade Católica no Porto. Pertence ao clero da Diocese do Porto e é doutorado em Teologia Moral, sendo esta uma das suas linhas privilegiadas de investigação que descreve como “a parte da Teologia que se ocupa de justificar e de mostrar as exigências éticas da fé cristã”. De que forma é que a Igreja pode ser uma resposta para os grandes desafios do mundo? “Sendo um espaço de abertura à criação autêntica do divino.”

 

Em que é que pensa quando se lembra da sua infância?

Vem-me a ideia de uma sociedade muito diferente da de agora. Nasci numa pequena aldeia em Felgueiras e o mundo era tão diferente. Nós, crianças, passávamos os dias juntas e criávamo-nos umas às outras. Íamos juntos para a escola, fazíamos asneiras juntos, éramos muito livres e os nossos pais preocupavam-se connosco, mas não nos controlavam tanto como agora. Vivíamos com muito pouco, mas apesar disso éramos felizes. O que tínhamos chegava para construirmos grandes mundos de fantasia e imaginar aquilo que poderia estar ao nosso alcance.  

 

“A vocação é um carisma.”

 

Entrou cedo para o seminário. Como é que surgiu essa opção na sua vida e que memórias tem desses tempos?

Nunca houve nenhuma pressão da família em entrar para o seminário. Foi através do padre da freguesia que se colocou a hipótese e eu pensei “vamos lá ver no que isto dá” e a verdade é que deu. Isto aconteceu em 1969. A nossa vida é feita de acasos e este acaso acabou por se tornar no meu caminho. Lembro-me que os primeiros tempos do seminário não foram fáceis, eu estava habituado a um ritmo muito livre e natural e, por isso, tive de me adaptar ao regime de internato, aos estudos e também ao facto de eu ter de conviver com outros rapazes que vinham da cidade e que acabavam por ter uma desenvoltura diferente da minha que vinha de um meio mais pequeno. Claro que acabei por me habituar e tenho excelentes memórias desses tempos. Tenho grandes companheiros dessa altura e reunimo-nos sempre todos os anos. Acabamos sempre por contar as mesmas histórias, já estamos a ficar velhos (risos). 

 

Quando é que despertou para a sua vocação de uma forma mais consciente?

Nunca tive a ideia de um destino e por isso não olho para a minha vocação dessa forma. Foi um caminho que fui construindo e que acabou por se tornar verdadeiro. Foi uma opção que tomei em liberdade e que não se impôs de modo algum. A vocação é um carisma que se encarna numa personalidade. Fui formador de padres durante muitos anos e acabei por viver esse problema de outro modo completamente diferente, neste outro sentido de que a vocação é cada vez mais um carisma, isto é, uma afetação da alma que acontece a algumas pessoas, mas que não tem uma regra fixa, como era no passado quando a figura do clérigo era uma figura muitíssimo marcada. O apostolado que existe são as pessoas, a quem a graça encaminha para um tipo de testemunho e vivência. A configuração social da nossa vida tem-se tornado cada vez menos institucional, portanto as pessoas não são a instituição, mas sim o modo como vivem.

 

Estuda aprofundadamente a Teologia Moral. Como é que pode ser definida?

A Teologia Moral é a parte da Teologia que se ocupa de justificar e de mostrar as exigências éticas da fé cristã. A nossa fé é a advertência de que um frente a frente com o divino, o reconhecimento de Deus, tem aplicações na nossa vida. A Teologia Moral ocupa-se de tentar compreender quais são as implicações éticas da fé.  No passado, a fé configurou a sociedade de uma maneira muito vincada. A partir da Idade Moderna essa configuração da sociedade a partir do cristianismo e da fé é muito menos visível, de tal maneira que, hoje, as pessoas já nem tomam conta disso e nem têm noção de que a sociedade democrática, desenvolvida e tecnologicamente avançada, que tão bem conhecemos, tem origem no cristianismo. Por exemplo, o reconhecimento dos direitos humanos tem origem no cristianismo e as pessoas acham que isso é um dado natural, mas não é. E não é porque os ambientes em que o cristianismo não é tão marcante não vivem da mesma maneira que nós.

 

“Os nossos futuros investigadores vão levar isto ainda mais longe e fazer com que a Teologia no Porto continue a prosperar.”

 

Explicar a moral do cristianismo é um desafio grande. É por isso que se dedica ao seu estudo?

Sim, acabei por me instalar comodamente neste aspeto da vida teológica e costumo defender aos nossos alunos que a teologia moral devia ser a última coisa que se estuda, porque enquanto que as outras partes da teologia, como as outras partes da ciência, descrevem o que nós vemos, esta aqui não descreve, esta aqui prescreve e prescrever é muito mais difícil do que descrever, claro, e, portanto, a moral é a ciência da liberdade e da resposta. Todo o ser humano tem de responder por aquilo que vive e a moral é aquilo que nos capacita para respondermos por aquilo que vivemos.

 

Quando é que o seu caminho se cruza com a Católica no Porto?

Quando eu estudei Teologia, o curso ainda não existia aqui na Católica e por isso estudei no Instituto de Ciências Humanas e Teológicas. Posteriormente, lembro-me que estava a estudar em Roma quando me ligaram a dizer para me ir preparando porque eu ia ser preciso na Faculdade de Teologia da Católica no Porto. Cheguei em 1988 e passei por toda esta solidificação da instituição da Universidade Católica. Foram tempos muitos bons na minha vida.  

 

O que é que mais gosta na sua vida de professor no curso Teologia?

A vida com os alunos é o melhor que se pode ter, porque a nossa matéria-prima não são substâncias, mas sim pessoas. É muito gratificante acompanhar a evolução dos alunos e verificar que quando saem da universidade já têm outra experiência e já são mais capazes e que serão até melhores que os próprios professores que os ensinaram.

 

“É essencial pensar na instituição política, económica e cultural na base da amizade e não na base do inimigo.”

 

Existem não-crentes que estudam Teologia?

Pode-se estudar Teologia como não crente absoluto, mas isso não é frequente. Mas é uma boa questão, na medida em que por um lado todo o crente tem uma parte de ateu. Os cristãos têm a noção de que Deus não é abarcável pela nossa doutrina e pelos nossos conceitos. Eu até costumo dizer uma coisa um pouco louca que é que Jesus Cristo também nos iniciou para o ateísmo, no sentido de nos ensinar a desconfiar do objeto da nossa fé e de não definirmos Deus com tintas demasiado precisas. Essa dose de ceticismo é o antídoto do fanatismo e quando a gente desconfia das nossas doutrinas, tornamo-nos mais realistas e mais livres. Deus é sempre maior do que as nossas doutrinas e conceitos.

 

A criação da Faculdade de Teologia veio introduzir a prática da investigação nesta área.

Essa foi a vantagem da criação da Faculdade de Teologia. A prática da Teologia apenas tinha a componente do ensino, mas também era essencial promover a investigação. E o que é que é uma faculdade sem investigação? Não é nada. Concretamente, aqui no Porto sempre houve um investimento grande na investigação e eu tenho muito orgulho nisso.

 

Que linhas de trabalho da faculdade gostaria de destacar?

Inicialmente, começamos por criar o gabinete de investigação de Bioética juntamente com a Ordem dos Médicos. Mais tarde criamos, também, o Centro de Estudos do Pensamento Português, porque o Porto tem uma característica única que é o ser a cidade onde se pratica a filosofia e o pensamento cujo tema principal é a justificação de Deus. Os portuenses filósofos sempre tiveram como problema principal a questão de Deus: Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Basílio Telles. Estes filósofos do Porto sempre se ocuparam de Deus, mesmo quando eram ateus, agnósticos, gnósticos ou até quando eram anticlericais. Uma faculdade que está sediada no Porto não pode deixar de se ocupar dessa gente que fez trabalhos excelentes, mesmo quando estes trabalhos impugnam a nossa maneira de compreender. É muito curioso porque no Porto a modernidade, a democracia, a tecnologia e as exigências da razão crescem na medida em que cresce, também, a interrogação sobre Deus. É precisamente sobre isto que temos trabalhado aqui. Para além disto, aqui na faculdade fizemos ainda uma terceira coisa que também é muito da minha preferência que foi uma linha de investigação sobre a fenomenologia, nomeadamente, fenomenologia da vida. Para além disto, a Faculdade de Teologia tem também o Centro de Estudos da História Religiosa, que tem produzido trabalhos muito interessantes. E outras coisas virão. Os nossos futuros investigadores vão levar isto ainda mais longe e fazer com que a Teologia no Porto continue a prosperar.

 

“Não tenho nenhum receio que o programa de Jesus se possa extinguir, não acredito que isso possa acontecer.”

 

Quais são alguns dos principais desafios da Igreja?

O primeiro desafio da Igreja e da Teologia é pensar-se como centralidade da vida e não como centralidade da representação. Nós temos de pensar em nós para lá das representações do passado e de determinadas representações idealistas. O segundo desafio é o pensar a vida com base na amizade. Temos pensado o passado na base da identificação do inimigo. Qualquer político pergunta logo: quem é o meu inimigo? quem é o meu adversário? quem é o meu competidor? Esta pergunta está muito mal feita, porque para que o mundo seja bom temos de questionar quem são os nossos amigos, os nossos cooperantes, os nossos aliados. É isto que o Papa nos propõe fazer. É essencial pensar na instituição política, económica e cultural na base da amizade e não na base do inimigo. A nossa sociedade é feita da guerra de todos contra todos ou da amizade de todos com todos? Esta é a grande pergunta. Para além disso, há também um terceiro desafio que é a forma como vamos pensar o trabalho no futuro. Não me refiro só ao trabalho no sentido profissional, mas, também, no sentido da manutenção da vida e da garantia da nossa vida. A tecnologia está a ter um impacto fora de série na nossa vida e isto é inegável e está a livrar-nos da escravatura do passado. Mas existe um outro lado que é o problema da máquina. Como é que nós vamos manter a máquina dentro do nosso horizonte humano? É que a máquina não trabalha, quem trabalha é o ser humano. Como é que vamos repartir o produto da produtividade do futuro se nós não tivermos a mesma ligação ao banco do trabalho como temos tido até agora?
Este é um problema do futuro e, por isso, é um problema teológico e filosófico muito grande. O problema não são as mudanças climáticas, o problema é a nossa maneira de gerir o mundo físico, químico, vegetal e animal.

 

De que forma é que a Igreja pode ser espaço de resposta para estes desafios?

A Igreja é um espaço de abertura à autêntica criação do divino. A Igreja não é uma instituição que tem de velar pela sua eternidade e pela sua perenidade, é uma instituição que tem de se pensar a si própria como um espaço de invenção do mundo segundo a criação divina. Eu não estou muito preocupado em como é que que vão ser os cristãos ou como é que vão ser a Igreja e os padres. Eu estou preocupado em saber como é que o cristianismo vai continuar a dar frutos no futuro.

 

“A amizade é a parte pública do amor.”

 

Tem curiosidade em saber como é que será o futuro do Cristianismo?

Tenho curiosidade em saber como é que se vão ler as escrituras, como é que vão fazer a Teologia, como é que vai ser o mundo da fé. Desafia-me muito pensar nisso.  António Alçada Batista, um escritor que já morreu há algum tempo, disse uma vez numa conferência para teólogos que não estava na preocupado em identificar os primeiros cristãos, mas o que, verdadeiramente, lhe ocupava o pensamento era em saber como é que serão os cristãos do futuro. Como é que será o cristianismo quando a instituição eclesial não for tão marcante na nossa vida? Aliás, como já tem vindo a deixar de ser, se pensarmos em como era no tempo da Idade Média, por exemplo. Mas, paralelamente a isto, não tenho nenhum receio que o programa de Jesus se possa extinguir, não me acredito que isso possa acontecer. A representação do cristianismo como o conhecemos pode morrer, mas aquilo que é a base do programa de Jesus e a sua escuta do divino não acabará nunca e, aliás, tem imenso futuro. É por isso que gosto muito de estudar e de compreender o ser humano, a forma como pensa a amizade e a escuta de Deus. É esta a maior abertura que há no mundo.

 

O que é que mais gosta de fazer nos seus tempos livres?

Gosto muito de jantar fora e gosto de escrever literatura. Já escrevi alguns livros de literatura. Escrevi uma vez um pequeno romance e, também, um livro de contos. A literatura permite-nos inventar o tal futuro com quase total liberdade, digo quase, porque temos sempre de responder pelas nossas personagens (risos).  Gosto, também, muito de viagens e de música. Acima de tudo, gosto de estar com pessoas amigas e isso é muito importante.

 

Já falou da amizade algumas vezes ao longo desta entrevista …

Claro, a amizade é a nossa parte comum. A amizade é a parte pública do amor, não é?

 

pt
30-06-2022