Vamos falar de Segurança Alimentar?: causas, dúvidas e desafios

“Se não é seguro, não é alimento”: este é um dos slogans que melhor explica a Segurança Alimentar e a sua importância.

As perguntas sobre esta área são muitas e, por isso, no âmbito do Dia Mundial da Segurança Alimentar, comemorado a 7 de junho e que resulta de uma iniciativa conjunta da Organização Mundial da Saúde e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, desafiamos a docente e investigadora da Escola Superior de Biotecnologia Paula Teixeira para uma entrevista que promete informar, esclarecer, alertar e valorizar.

UCP: O que é a Segurança Alimentar e porque é que é um tema tão importante?

PT: A Segurança Alimentar é uma abordagem multidisciplinar que envolve ciência, processos, práticas e regulamentação, para garantir que os alimentos não são veículo de transmissão de doenças. Apesar de todos os esforços da indústria, da comunidade científica e das entidades oficiais, incluindo as reguladoras, as doenças causadas pelo consumo de alimentos e de água contaminadas continuam a ser um dos grandes problemas de saúde pública em todo o mundo. Anualmente, cerca de 600 milhões de pessoas - uma em cada 10 - fica doente por ter consumido alimentos contaminados, resultando em mais de 420 mil mortes, das quais 125.000 são crianças com menos de cinco anos. Embora o impacto não seja comparável, para uma ideia da dimensão, 767 milhões foi o número casos de COVID-19 reportados em mais de três anos de pandemia (31 de maio de 2023). A distribuição geográfica destas doenças não é uniforme, dependendo de fatores como as condições higiossanitárias, o acesso a água potável, os sistemas de vigilância de doenças, o clima e até mesmo os hábitos alimentares específicos de cada região. Mas se as regiões com menor desenvolvimento socioeconómico enfrentam maiores desafios na segurança alimentar, desenganem-se os que pensam que as doenças veiculadas por alimentos contaminados não são um problema em países desenvolvidos.  Três exemplos que inundaram as notícias... O surto de infeção causado pela bactéria Escherichia coli, (erradamente) associado a pepinos cultivados em Espanha, que em 2011 afetou quase 4000 pessoas e causou 53 mortes, maioritariamente na Alemanha. O surto de listeriose (infeção grave causada pela bactéria Listeria monocytogenes) em Espanha, em 2019, que atingiu 204 pessoas, causou três mortes e provocou cinco abortos devido ao consumo de produtos de charcutaria da marca "La Mechá". O nosso “jardim à beira-mar plantado” foi palco de um dos mais graves surtos de listeriose de que há registo, associado ao consumo de um queijo contaminado, produzido por uma empresa localizada no Alentejo: 30 pessoas adoeceram e 11 morreram[1].  E a contaminação dos alimentos tem implicações que vão para além das consequências diretas para a saúde pública.  Por exemplo, quando são detetadas contaminações por agentes causadores de doenças (micróbios ou químicos) ou quando são suspeitos de terem causado doenças, os alimentos podem ter que ser recolhidos do mercado para evitar (mais) doenças e depois destruídos, o que causa perdas e desperdícios alimentares significativos, com impacto para a economia e para o ambiente. Estas recolhas podem também afetar a disponibilidade e a acessibilidade dos produtos recolhidos, bem como a reputação das empresas associadas e a confiança dos consumidores, com grandes prejuízos para os negócios, levando, muitas vezes, ao encerramento das organizações envolvidas. O Dia Mundial da Segurança Alimentar pretende ser um momento de reflexão, de consciencialização e de inspiração de todos - “Food safety is everyone’s business” – para promover ações que permitam prevenir, detetar e gerir os riscos de origem alimentar, fortalecendo assim a segurança alimentar e contribuindo para uma melhor saúde, o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável.

UCP: Quais são os principais desafios que se colocam, atualmente, à Segurança Alimentar?

PT: Se não há grandes dúvidas de que, globalmente, os alimentos nunca foram tão seguros como hoje também é certo que, do “prado ao prato”, são muitos os desafios que se colocam à Segurança Alimentar. A sair de uma pandemia, o mundo foi confrontado com uma guerra. A falta de recursos, os desastres ambientais, os colapsos económicos, as migrações e as crises humanitárias geram situações em que a segurança ao longo da cadeia alimentar é comprometida a vários níveis. A população mundial já ultrapassou os 8 biliões e, em muitos países, está a envelhecer. Os mais velhos são um grupo de risco para as doenças causadas pelo consumo de alimentos contaminados. Com a globalização dos mercados, muitos alimentos são provenientes de regiões com diferentes práticas de higiene e segurança alimentar. Fatores ambientais como as alterações climáticas, a degradação dos solos, a sobre-exploração dos recursos naturais e a escassez de água aumentam os riscos de contaminação ao longo da cadeia alimentar. E as novas tendências... As expectativas dos consumidores são complexas. Ao mesmo tempo que se exigem alimentos seguros e convenientes com um longo prazo de validade, assistimos a um aumento da procura de produtos "naturais", "sem conservantes" e "menos processados". Para aumentar a complexidade, os consumidores esperam que todos os tipos de alimentos estejam disponíveis em todos os lugares e a qualquer momento. Estes são, sem dúvida, grandes desafios para a indústria alimentar.

 

“…a maioria das toxinfeções alimentares são evitáveis.”

 

UCP: A Segurança Alimentar está intimamente ligada à saúde. Quais são os riscos para a saúde associados à falta de segurança alimentar e como podemos mitigá-los?

PT: Muitos dos episódios de diarreia, de vómitos e de mal-estar geral de que sofremos são toxinfeções alimentares (vulgarmente referidas como intoxicações alimentares), causadas pela presença de micróbios nos alimentos que consumimos. Embora estas situações não sejam normalmente graves, e a sintomatologia desapareça ao fim de poucos dias, muitas vezes sem recurso ao uso de medicamentos, alguns casos são graves e podem ser fatais. As grávidas, os idosos e os doentes apresentam um maior risco de contrair estas doenças. Mas a maioria das toxinfeções alimentares são evitáveis. Na Europa, cerca de 40% das toxinfeções alimentares têm origem nas nossas casas e resultam de um pequeno número de erros: a exposição dos alimentos a temperaturas de aquecimento ou de refrigeração inadequadas e algumas práticas de higiene incorretas são os erros mais comuns. Se as nossas práticas estão na origem de alguns problemas então a sua prevenção estará também ao nosso alcance. O que podemos fazer nós, consumidores, para as evitar?  A Organização Mundial da Saúde resume a cinco as regras de higiene e segurança alimentar:

  • Manter a limpeza (mãos, equipamentos, superfícies);
  • Prevenir a contaminação cruzada (separar alimentos crus – em particular carnes, ovos, peixes e vegetais - de alimentos prontos a comer);
  • Cozinhar os alimentos por tempos/temperaturas suficientes;
  • Manter os alimentos a temperaturas seguras (os pratos quentes a temperaturas superiores a 60 ºC e os alimentos refrigerados a 4 ºC ou menos);
  • Utilizar água e ingredientes de fontes seguras.

“…a ESB foi pioneira no lançamento da formação em Engenharia Alimentar em Portugal, em 1984, e oferece há mais de 20 anos uma Pós-graduação em Segurança Alimentar.”

 

UCP: De que forma é que a investigação e a educação podem desempenhar um papel fundamental na promoção da Segurança Alimentar nas comunidades?

PT: A investigação e a educação desempenham um papel fundamental na promoção da segurança alimentar, fornecendo o conhecimento científico, desenvolvendo tecnologias, consciencializando os consumidores e fundamentando políticas e regulamentações eficazes. O ensino e a investigação na ESB/CBQF têm contribuído para garantir que os alimentos sejam seguros para o consumo, promovendo a saúde e o bem-estar dos consumidores. Há mais de 30 anos que a ESB forma profissionais de referência que atuam, a diversos níveis, no complexo processo que constitui a cadeia alimentar moderna. Por exemplo, a ESB foi pioneira no lançamento da formação em Engenharia Alimentar em Portugal, em 1984, e oferece há mais de 20 anos uma Pós-graduação em Segurança Alimentar. No CBQF avaliamos os riscos associados aos alimentos, desenvolvemos métodos de deteção de contaminantes e temos vários projetos de investigação nacionais e internacionais em curso, muitos deles em parceria com empresas, para desenvolver estratégias de controlo inovadoras e “clean label” (novos conservantes, processos alternativos, embalagens ativas, etc.). Uma outra linha de investigação no CBQF tem focado os seus trabalhos na avaliação do impacto dos conhecimentos, perceções e práticas dos consumidores na segurança alimentar com vista ao desenvolvimento de estratégias de comunicação eficazes. A comunicação sobre segurança alimentar é também uma das atividades da ESB. “De pequenino se torce o pepino: lições de segurança alimentar para os mais novos”, “É sempre tempo de aprender: lições de segurança alimentar para os mais velhos” e “Listeriose: uma infeção grave, mas fácil de prevenir” são exemplos dos muitos projetos de educação em segurança alimentar que a ESB tem desenvolvido com a comunidade.


[1] Magalhaes R, Almeida G, Ferreira V, Santos I, Silva J, Mendes MM, Pita J, Mariano G, Mancio I, Sousa MM, Farber J, Pagotto F, Teixeira P. Cheese-related listeriosis outbreak, Portugal, March 2009 to February 2012. Euro Surveill. 2015 Apr 30;20(17):21104. doi: 10.2807/1560-7917.es2015.20.17.21104. PMID: 25955775.

pt
06-06-2023