Raquel Matos: “Flexibilidade e capacidade de estabelecer pontes são essenciais para os futuros profissionais.”

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Raquel Matos é docente, investigadora e diretora da Faculdade de Educação e Psicologia, da Universidade Católica no Porto. A articulação entre ensino, investigação e serviço à comunidade, a convergência entre a Educação e a Psicologia, a internacionalização e a inovação pedagógica são as principais bandeiras do seu mandato. É especialista na área da Psicologia da Justiça e do Comportamento Desviante e tem um especial interesse pelas questões de género. O que é que gosta de fazer nos tempos livres? “Acima de tudo, gosto de ter tempos livres.”

 

Lembra-se do momento em que lhe fizeram o convite para ser diretora da FEP?

Lembro-me que estava numa posição confortável, como professora associada e muito dedicada a diferentes projetos de investigação. Em teoria, é mais tranquilo não ter cargo nenhum (risos). Mas quando a Senhora Reitora falou comigo, numa altura em que eu tinha 47 anos e estávamos em plena pandemia, pensei que este era um desafio que tinha de agarrar. Não o fazer seria dar um sinal a mim própria de que estava à espera da reforma.

 

Enquanto diretora da FEP, quais são os grandes desafios?

Um dos desafios é o de promover a convergência entre as áreas nucleares da faculdade, a Educação e a Psicologia, potenciando o melhor de cada uma. São duas áreas fundamentais no que toca ao desenvolvimento humano, mas com tradições distintas em termos de metodologias de trabalho. Tem sido um desafio grande trabalhar esta convergência, mas penso que estamos a alcançar bons resultados. A internacionalização e a inovação pedagógica são também duas grandes preocupações que assumo no meu mandato. E um outro desafio muito importante diz respeito às pessoas, pois tenho como preocupação proporcionar um contexto de trabalho promotor de bem-estar, sobretudo depois do período de pandemia que vivemos, e que marcou o início do mandato.

 

Porquê a escolha da Psicologia para a sua vida?

Não tenho nenhuma história bonita para contar, até porque a Psicologia era um mundo desconhecido para mim e foi uma grande descoberta. Comecei por ingressar na licenciatura em Ciências da Nutrição, mas como não gostei, no ano seguinte candidatei-me e entrei em Psicologia. Até esse momento não tinha nenhuma referência de família ou amigos que trabalhassem nesta área e, agora que penso, nem sequer tinha vivido de perto problemas de saúde mental. Era mesmo um mundo novo para mim. Entrei no curso com uma perspetiva de ligação mais às ciências exatas, como a biologia e a matemática, mas depressa fui caminhando para a sua dimensão mais social que é aquela onde hoje trabalho, na área onde a Psicologia se cruza com a Sociologia e a Antropologia.

 

Lembra-se de quando é que se apercebe de que gosta mesmo de Psicologia e que se sente no lugar certo?

Julgo que terá sido quando comecei a ter disciplinas que relacionam a Psicologia com o sistema de justiça e com os comportamentos desviantes. Talvez a primeira referência até tenha sido a Psicologia Comunitária. Fiquei muito interessada na intervenção em contextos comunitários, fundamental quando falamos de prevenção de comportamentos delinquentes.

 

“O doutoramento abriu-me um mundo novo.”

 

Terminou a licenciatura de 5 anos e ingressou de imediato num mestrado. Já tinha ideias de seguir a vida académica?

Quando terminei a licenciatura, recebi uma bolsa para fazer investigação e entrei no mestrado. A oportunidade apareceu e eu agarrei-a. Fui desafiada a seguir este caminho. 
 

“Vidas Raras de mulheres comuns: percursos de vida, significações do crime e construção da identidade” foi o nome da sua tese de doutoramento.

Eu tenho muito interesse pelos contextos privativos de liberdade, assumindo sempre um olhar crítico. Mas o meu mestrado foi na área da psicologia do desenvolvimento, sobre mães adolescentes, experiências de vitimação e vinculação mãe-bebé. Acompanhei mais de cem grávidas adolescentes, desde a gravidez até aos dezoito meses de vida dos seus bebés. Isto permitiu-me ganhar muitas competências de investigação, de desempenho de múltiplas tarefas, de sistematização da informação, de trabalho em equipa. Quando terminei o mestrado, fiquei com vontade de fazer o doutoramento e fiquei muito interessada nas questões de género. Quis continuar a estudar jovens, mas, mais do que compreender as suas experiências enquanto vítimas, interessou-me compreender de que forma mulheres jovens se envolvem em comportamentos criminais. Propus-me, então, estudar as suas trajetórias até ao crime, partindo das suas narrativas, ou seja, das histórias que as próprias jovens contam sobre o seu envolvimento no crime.

 

“Vive-se uma excessiva cultura de caridade em Portugal.”

 

Como é que contam as suas histórias?

Desengane-se quem acha que alguém que comete um crime a única coisa que faz é desresponsabilizar-se. Não é exatamente assim. Há toda uma narrativa, uma construção desse comportamento e da trajetória percorrida até lá chegar. O doutoramento abriu-me um mundo novo.

 

Como é que nos despimos de preconceitos quando estamos frente a frente com histórias de violência e envolvimento no crime?

Olhando para trás, não consigo pôr-me exatamente na cabeça da Raquel Matos com vinte e tal anos (risos). Mas agora, com os meus 49, sem dúvida reconheço que das coisas fundamentais para quem trabalha nesta área é a capacidade de refletirmos sobre a nossa visão do mundo e sobre nós e os nossos preconceitos. Como é que eu vejo o outro? Qual é o meu papel? Em que é que eu sou diferente? Tentamos trabalhar estas questões aqui na faculdade, com os nossos estudantes. A parte humana, para a nossa Universidade, é fundamental, e é esta dimensão humana que nos faz quebrar barreiras e nos faz aproximar das diferentes realidades. Este tema do preconceito faz-me refletir muito sobre a cultura de caridade que se vive em Portugal. É evidentemente importante que sejamos solidários e atentos aos outros e às suas necessidades, mas não podemos reforçar a ideia de que há dois grupos distintos: o das pessoas que ajudam e o das pessoas que são ajudadas. Na Católica, preocupamo-nos em promover junto dos nossos estudantes programas de voluntariado, como o serviço comunitário que proporcionamos aos estudantes de psicologia, para que mergulhem em contextos e realidades sociais que os desinstalem e que quebrem preconceitos. E esses programas são acompanhados de formação.

 

“Os problemas que outros enfrentam hoje, podem ser nossos amanhã.”

 

O que é que mais tenta transmitir aos seus alunos?

Preocupo-me em formar psicólogos e psicólogas que não se assumam como diferentes daqueles que ajudam, ou que pensem que “nunca vão precisar de ajuda”, “nunca vão ter dificuldades” ou que “nunca vão ser marginalizados ou discriminados”. Este tipo de pensamento preocupa-me tremendamente enquanto responsável pela formação de jovens, de futuros profissionais, porque cava um fosso entre realidades e não permite um encontro verdadeiro e uma real compreensão dos problemas sociais. Não devemos olhar para os outros como se fossem diferentes de nós, e devemos pensar que os problemas que outros enfrentam hoje podem ser nossos amanhã.

 

Que características é que são indispensáveis para quem estuda e exerce na área da Psicologia?

Flexibilidade e capacidade de estabelecer pontes são essenciais para os futuros profissionais. É importantíssimo. Ao longo da minha vida, diferentes experiências e circunstâncias foram-me ensinando a importância de me adaptar a várias realidades e de criar pontes e ligações entre diferentes mundos. No outro dia uma estudante perguntou-me: “Como é que isso se aprende?”. Bem, ao falarmos sobre este assunto já estamos a fazer caminho.

 

Quem é que mais a inspirou ao longo do seu percurso?

A minha amiga e orientadora de doutoramento na Universidade do Minho, a Carla Machado, que, infelizmente, já cá não está. Uma pessoa excecional e muito inteligente. Às vezes penso que projetos teríamos hoje em conjunto se não tivesse morrido. Tínhamos um perfil um bocadinho diferente, mas trabalhávamos muito bem juntas. Ela tocava mais instrumentos, tinha essa capacidade de diversificar muito a sua atividade. Marcou-me imenso, porque tínhamos muita sintonia, mas ao mesmo tempo, era também a pessoa capaz de me ensinar, de me corrigir um capítulo com comentários demolidores. Inspirou-me muito e continua a fazê-lo.

 

O que é que gosta de fazer nos seus tempos livres?

Acima de tudo, gosto mesmo de ter tempos livres e são uma prioridade na minha vida. Não há bem-estar no trabalho se não equilibrarmos com tempos livres de qualidade. Gosto de fazer pilates, de jogar ténis e adoro partilhar bons petiscos com amigos.

 

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16-03-2023