Mariana Barbosa: “A paz tem de implicar a justiça e a igualdade social”

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Chama-se Mariana Barbosa, nasceu em Braga e tem 41 anos. É docente e investigadora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica no Porto e é co-coordenadora da Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos. Dedica-se ao estudo da Psicologia da Paz, com especial enfoque na área dos direitos humanos. Determinada e muito envolvida em projetos de voluntariado e de ação social, afirma que não se revê na “lógica do académico puramente teórico”.  Nos tempos livres? “Estou completamente viciada no surf!”

 

Como é que se pode definir a Paz?

Normalmente associamos a paz apenas à ausência de conflito, mas eu acredito que seja muito mais que isso. Há um autor muito importante, Johan Galtung, considerado o fundador dos estudos para a paz, que veio introduzir a chamada “paz negativa” e a “paz positiva”. Esta diferenciação parte do pressuposto de que olhar para a paz apenas através da ausência de conflito é muito redutor e até perigoso. Se olharmos para a paz apenas desta forma, nunca conseguiremos sarar verdadeiramente as feridas e resolver os ciclos de violência. A paz tem de implicar a justiça, a igualdade social e, também, a restauração de dignidade humana, sob pena de se perpetuar a violência e a vingança. É por isso que trabalhar a paz não é só acabar com a guerra, mas sim abrir caminho e trabalhar com programas de reconciliação e de promoção da justiça e da igualdade social. Porque aquilo que alimenta a vontade de pegar numa arma é a sensação de que algo é injusto.

 

“Não adianta só baixar as armas, porque há feridas e traumas que ficam.”

 

Quando é que se começou a interessar pelos temas relacionados com a Psicologia da Justiça?

No terceiro ano da licenciatura em Psicologia, tive a disciplina de Psicologia da Justiça e foi amor à primeira vista. Fiquei completamente fascinada. Na verdade, sempre senti tendência pelas áreas mais sociais e que envolvessem a exclusão social, mas foi um caminho de descoberta. Acabei por me cruzar com pessoas que muito me inspiraram, como é o exemplo da Professora Carla Machado que mais tarde escolhi para ser a minha orientadora de doutoramento e que infelizmente já faleceu. No último ano da licenciatura, tinha de escolher uma área de especialização. É engraçado porque durante toda a minha vida tinha achado que ia seguir a área Clínica e então, apesar de estar completamente fascinada com a área da Justiça, achei que o mais sensato seria tirar à sorte. Lembro-me que escrevi Clínica num papelinho e Justiça noutro. Na secretaria antes de escolher a área tirei um papelinho e saiu “Clínica”. Fiquei desiludida com a sorte que me tinha calhado e acabei por ignorar aquele esquema que tinha montado e escolhi Justiça. Aí percebi realmente o que queria.

 

Foi no âmbito do seu doutoramento que viveu em Boston …

Sim, que grande experiência! Quando soube que queria fazer o doutoramento, fui ter com a Professora Carla Machado. Quando lá cheguei, a professora disse-me que tinha acabado de ser contactada por um grupo de investigadores da Universidade de Boston a propósito de um projeto relacionado com a violência de Estado. No fundo, a investigação estudava de que forma é que as pessoas legitimam ou não a violência quando esta é cometida pelos Estados. Escusado será dizer que quando ouvi a palavra Boston fiquei logo entusiasmada. Este tema também acabou por mudar a minha vida, porque, entretanto, passei a debruçar-me sobre os direitos humanos. O tema do doutoramento foi uma revolução para mim, porque me apaixonou imenso e porque me senti profundamente envolvida. Tentei e tento ainda hoje compreender o que é que leva as pessoas a serem violentas e depois a usar estes mesmos conhecimentos para tentar promover os direitos humanos. A minha tese representou o primeiro contributo em Portugal para a afirmação da área específica da Psicologia da Paz.

 

“Quando vamos para o terreno ficamos ligados a famílias e às suas histórias.”

 

Durante muitos anos, a Psicologia contribuiu para a guerra?

Sim, durante muitos anos a Psicologia contribuiu imenso para esforços de guerra, através dos testes psicotécnicos de inteligência, através da seleção das pessoas mais capazes de matar, entre outros exemplos. Não é por acaso que num pelotão de fuzilamento disparam todos ao mesmo tempo, é para fazer o efeito de ilusão da responsabilidade. A Psicologia é uma arma muito poderosa que, muitas vezes, é utilizada para a guerra e não para a paz. Se a Psicologia pode ajudar a matar, então temos de ser capazes de usar toda a informação e conhecimento para usar ao contrário, contribuindo para a prevenção. Toda esta experiência e o caminho que tenho feito tem sido no sentido de contribuir para a criação de mecanismos de justiça. Não adianta só baixar as armas, porque há feridas e traumas que ficam. É preciso haver reparações, indemnizações, intervir nos encontros das vítimas com os ofensores, intervir nos processos de reconciliação.

 

De que forma é que o trabalho no terreno é importante para a sua atividade académica e de investigação?

É no terreno que criamos uma ligação profunda com o tema em questão. É totalmente diferenciador e fortalece muito o nosso trabalho. Quando vamos para o terreno ficamos ligados a famílias e às suas histórias. Nunca me revi na lógica do académico puramente teórico. Só depois de ter estado na Grécia com a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) é que passei a falar com conhecimento de causa sobre a intervenção em crise e sobre aquele que é o papel de um psicólogo num campo de refugiados.

 

Como é que surge a oportunidade de ir como voluntária para os campos de refugiados, na Grécia?

Eu estava a trabalhar estes temas, mas só numa lógica teórica, e no início de 2016, na crise de refugiados no Mediterrâneo, senti que precisava de ter um papel ativo, na linha da frente. Em janeiro de 2016, pedi autorização à direção da Faculdade para ir para a Grécia e autorizaram. Dei apoio na chegada dos barcos, na organização logística dos campos, fiz intervenção em crise. Quando lá estive apercebi-me que havia muita informação que se estava a perder e alguns processos que não estavam a ser desbloqueados. Fui com a ideia de intervir mais enquanto psicóloga, mas acabei por ter um papel mais de facilitador e de ligação. Quando regressei, o responsável da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) falou comigo e disse que era muito importante continuar a haver um representante português no local que ajudasse a fazer este contacto com Portugal. Fui desafiada a ir novamente e lá fui eu 3 meses em missão, com a função de montar as bases do programa de voluntariado PAR Linha da Frente.

 

“Esta cultura de humanismo e de voluntariado diferencia-nos muito.”

 

Em março de 2022 vai de viagem num autocarro até à Polónia para trazer ucranianos que fogem da guerra para Portugal. O que é que mais a marcou?

Na viagem de regresso, lembro-me que um camionista entregou um peluche que era da filha dele a uma menina ucraniana. De forma geral, havia muita gente que vinha ter connosco e que se interessava. Lembro-me que fomos abordados por duas pessoas que nos vieram entregar um bocado de chouriço. Coisas tão pequenas, não é? As áreas de serviço desbloqueavam as casas de banho para podermos aceder livremente sem termos de colocar a moeda. Havia uma generosidade profunda das pessoas. É muito bonito de ver. Outro momento que me marcou aconteceu também numa área de serviço, quando um senhor, que por acaso me fez muito lembrar o meu pai e que estava com a sua mulher, me perguntou para onde é que nós íamos. Eu disse-lhes que íamos para Portugal e ofereci-me para os ajudar a marcar um alojamento algures através da internet. É no entretanto que lhes digo para ficarem com o meu contacto se precisarem de vir para Portugal e ele responde que tem dinheiro para os próximos 15 dias e começa a chorar. Naquele momento percebi que mais do que terem de sair do seu país, sentiam que tinham perdido a sua dignidade, porque até quando lhes ofereci comida lhes custou a aceitar que, verdadeiramente, precisavam. Acho que projetei neste casal os meus pais e emocionou-me bastante.

 

O voluntariado é ainda uma dimensão pouco valorizada na vida das pessoas?

Sim, embora ache que se está no bom caminho. Acredito que o voluntariado tem de ser uma parte da nossa vida. Da mesma forma que estudamos, que trabalhamos, que nos dedicamos à família e amigos, também temos de nos dedicar ao voluntariado. A Católica valoriza muito a dimensão do voluntariado e proporciona aos estudantes experiências variadas que os ajudam a desenvolver diferentes competências e que os ajudam a compreender a importância do serviço aos outros. Outro bom exemplo é a questão da metodologia Aprendizagem-Serviço que tem sido implementada. Todo este dinamismo da Católica é extraordinário. Esta cultura de humanismo e de voluntariado diferencia-nos muito.

 

“A educação para a paz, em primeiro lugar, tem de ser, essencialmente, um exercício de humildade.”

 

É uma das coordenadoras da Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Católica no Porto. De que forma é que considera que é uma formação diferenciadora?

Na Católica temos vindo a implementar um caminho de consolidação nesta área específica dos direitos humanos. A Pós-Graduação já está na 4ª edição, está sempre cheia e, por isso, o teste já está feito, não é verdade? Aquilo que realmente diferencia esta formação é ser verdadeiramente interdisciplinar e é a única formação deste tipo oferecida em Portugal. É uma iniciativa conjunta da Faculdade de Direito, da Faculdade de Educação e Psicologia e da Área Transversal de Economia Social da Universidade Católica Portuguesa. Reúne contributos das áreas do Direito, da Educação, da Economia Social e da Psicologia de igual forma.

 

Como é que se educa para a paz?

A educação para a paz, em primeiro lugar, tem de ser, essencialmente, um exercício de humildade. Sem humildade, vamos sempre sentir que estamos um bocadinho superiores aos outros e este é o primeiro ingrediente para desumanizarmos quem está ao nosso lado. Outro elemento importante é não nos conformarmos com aquilo que é mais confortável. Por exemplo, é mais confortável pensarmos que o Holocausto aconteceu porque existiu o Hitler. No entanto, esquecemo-nos de que houve pessoas que foram espetadoras e que foram alimentando tudo o que estava a acontecer.  Estes espetadores são na sua maioria pessoas que se justificam dizendo que estavam a cumprir ordens. O mesmo acontece quando assistimos a situações de bullying e nem nos apercebemos que direta ou indiretamente estamos a alimentar episódios de violência. Há um conjunto de circunstâncias que nos levam a alterar o comportamento e que nos levam a conformar e a cooperar com muitas das coisas que acontecem à nossa volta. O projeto Heroic Imagination, fundado e liderado pelo Philip Zimbardo, Prof. Emeritus da Stanford University, e do qual eu sou coordenadora em Portugal, trabalha precisamente para a consciencialização de que qualquer pessoa aparentemente vulgar neste planeta é capaz de cometer atos heroicos. Ninguém está isento da possibilidade de ser coagido pelo mal, no entanto, o inverso também é verdade. Este heroísmo comum e do quotidiano é sobretudo sobre a humildade. Há uma frase que gosto muito que é “a linha que separa o bem e o mal atravessa o coração de cada ser humano” e eu acredito nisto. Não há os bons. Nem há os maus, porque tudo nasce de uma decisão. Todos os dias da nossa vida tomamos essa decisão.  

 

O que é que mais gosta de fazer nos seus tempos livres?

A pandemia trouxe-me um vício: o surf! Estou completamente viciada e até ando a pensar em projetos que relacionem o surf e a psicologia. Vivi em Viana do Castelo até aos meus onze anos e, por isso, tenho esta ligação profunda com a praia e com o mar. Sou um bichinho de água e tenho um lado radical. Mas, essencialmente, gosto daquilo que me desafia e daquilo que pode sair fora do meu controlo. No surf basta haver uma alteração no vento que tudo muda. Eu gosto de lidar com esta imprevisibilidade. É a mesma imprevisibilidade com que tinha de lidar quando estava em contexto de crise e emergência nos campos de refugiados. Gosto de me superar perante os desafios imprevisíveis da vida.

 

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13-07-2022