Pedro Alves: “O cinema é uma janela sobre tudo aquilo que ainda não descobrimos sobre nós mesmos.”

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Pedro Alves é docente e investigador da Escola das Artes. Foi alumno de Som e Imagem e é, atualmente, coordenador da Licenciatura em Cinema: “Foi um privilégio ter feito parte da equipa que pensou os cursos de Cinema da Escola das Artes.” O cruzamento entre o cinema e a educação é o seu grande interesse de investigação, porque “o cinema tem o poder de ampliar as nossas possibilidades de experiências.” As séries podem ser consideradas cinema? Qual o poder do cinema na promoção de um mundo mais sustentável? Qual o desafio de se ser professor na área das artes? Descobrimos tudo nesta entrevista.

 

O que é que um bom filme tem de ter?

Em primeiro lugar tem de ter espetadores (risos). Convém que haja quem os veja, até porque um filme só se completa quando é visto e quanto mais é visto mais ele se renova nos significados que proporciona. Muita da evolução que o cinema foi tendo prende-se, precisamente, com o questionar dos cânones mais clássicos sobre como é que um filme deve ser feito: as regras de composição, de edição e de montagem, a linearidade narrativa, entre outros. Por exemplo, Jean-Luc Godard veio questionar e revolucionar tudo isso. Um bom filme traz alguma coisa de fresco, de novo e não se limita a reciclar de alguma forma coisas que já foram feitas ou que já estão comprovadas que interessam a um grande público. Bom cinema é aquele que, primeiramente, nos impacta e desperta algum sentido em nós, fazendo-nos pensar e refletir sobre alguma coisa de diferente e de distinto. E pode ser um simples pormenor.

 

O que é que distingue o cinema de outras formas de arte?

As diferentes formas de arte não se substituem, mas complementam-se. Quanto mais estivermos abertos ao contacto com diferentes formas artísticas, melhor. Mas, claro, que enquanto professor e investigador desta área, há algo que me interessa mais no cinema do que noutras artes. Talvez seja a forma como o cinema nasce e o que representa. O cinema de certa forma é uma súmula de muitas outras formas de arte. Temos arquitetura, temos pintura, temos fotografia, temos som. Tudo isto em movimento. É um campo de congregação de muitas formas de expressão, mas com uma singularidade muito própria.

 

É alumno da Licenciatura em Som e Imagem da Escola das Artes.

Vim para a Católica com esta ideia de querer explorar várias áreas. Tal como atualmente, o curso de Som e Imagem era de banda larga e isso abria muitas oportunidades. Foi-me muito útil contactar com diferentes áreas e com professores e trabalhos diferentes. No fundo, os estudantes de Som e Imagem são impactados por áreas tão diversas como o vídeo, a música, a animação, as artes digitais, etc. Isto permitiu-me criar uma rede de contactos e de conhecimentos muito úteis para os próximos passos profissionais.

 

“Queremos alicerçar o trabalho dos alunos através da convocação de artistas, realizadores e profissionais.”

 

Esteve em Madrid a fazer o doutoramento. Em que consistiu o seu projeto de doutoramento?

O doutoramento foi sobre a área que ainda hoje me interessa mais como investigador que é o cruzamento do cinema com a educação. O que é que aprendemos com os filmes? O que é que retiramos deles? Qualquer investigação parte de uma intuição e eu já tinha esta intuição de partida de que qualquer filme nos abre a novas aprendizagens a partir da experiência de novas histórias, mundos, vidas e personagens. Na melhor das hipóteses iremos viver 100 anos e esse tempo não será suficiente para conhecermos tudo. O cinema vem ampliar as nossas possibilidades de experiências. Foi isto que eu procurei estudar não só do ponto de vista teórico, mas também empírico. Recolhi respostas de cerca de 850 portugueses e espanhóis sobre as aprendizagens retiradas a partir do cinema e os resultados foram muito positivos. A grande maioria reconheceu, efetivamente, aprendizagens informais a partir do cinema.

 

Fez parte da equipa que lançou de raiz os novos cursos de Cinema na Escola das Artes.

Foi um privilégio ter feito parte deste conjunto de pessoas que pensaram os cursos de Cinema da Escola das Artes. Apostámos, à imagem de outros cursos da Escola, num modelo de ensino que consiste no desenvolvimento de projetos, na certeza de que o saber teórico deve ser trabalhado e convocado através da prática. O Cinema na Escola das Artes foi construído com base nesta filosofia de trabalho que, realmente, marca a diferença. É isto que nos distingue de outros cursos de Cinema. Para além disso, queremos alicerçar o trabalho dos alunos através da convocação de artistas, realizadores e profissionais externos. Os nossos estudantes têm, assim, a oportunidade de contactarem com alguns dos principais nomes do cinema em Portugal, alguns deles com considerável projeção também internacional. Os nossos estudantes são constantemente convidados a assimilar, observar e discutir novas ideias e perspetivas.

 

Quais são as principais preocupações que têm no ensino do Cinema?

É importante dar a compreender que tipo de cinema se faz em Portugal, na Europa e no Mundo. Como é que se faz cinema? Que realidades há? Com que meios se faz? Com que resultados e para que públicos? Para que circuitos? Muitos alunos chegam à licenciatura, naturalmente, com ideias de fazer grandes séries e filmes de super-heróis. É importante sonhar e ter objetivos, mas também é importante apresentarmos todas as possibilidades e dar-lhes outras perspetivas, porque o cinema nunca é só aquilo que eles conhecem. Dar-lhes a conhecer outras hipóteses é muito importante, mesmo aquelas que poderão não agradar no imediato, como é o caso do cinema experimental ou do cinema de autor. Mas a função da universidade é essa mesmo. Queremos proporcionar conhecimento e mostrar diferentes caminhos para que depois cada um, com as suas ferramentas, possa decidir em consciência qual a direção para a sua identidade enquanto artista, autor e profissional.

 

“O cinema não é apenas um instrumento de experiência, mas, também, um instrumento de expressão.”

 

Qual é o maior desafio de se ser professor?

Não há uma fórmula correta de fazer as coisas. Este é o grande desafio. Se houvesse uma forma certa de ensinar, então seria bem mais fácil. Há diferentes metodologias que devem atender à diversidade de estudantes que nos chegam todos os anos.  Enquanto professor, tenho de ser capaz de acolher e ensinar cada aluno na sua diferença e sempre tendo em conta as suas necessidades. As artes não são uma ciência exata e por isso o desafio é acrescido. O exercício de descoberta é um exercício de desenvolvimento interior, mas, também, de abertura ao mundo. No ensino artístico, os professores devem ter uma grande liberdade e variedade nas abordagens, metodologias e referências.

 

O que é que as novas gerações trazem de diferente?

Tudo de bom, porque nos trazem referências novas importantes para o nosso trabalho. Longe de mim pensar há dez anos que hoje devo estar atento ao que, também, se passa no TikTok, por exemplo. Nós vamos acompanhando tudo aquilo que as novas gerações convocam: os seus hábitos, os seus interesses, a forma como veem o mundo. Para além disto, cada estudante é diferente e temos de lidar com cada um de forma única. Há um lado interpessoal que é sempre convocado com cada nova geração. É nesta relação que somos contagiados pelas novidades que trazem.

 

Cinema e Sustentabilidade: que preocupações tem com este tema?

Há uma discussão atual grande sobre as questões de sustentabilidade na produção cinematográfica. Começam a surgir mais preocupações relativas aos processos de produção, nas suas diversas fases, para que sejam mais sustentáveis. Depois há, também, uma ideia de sustentabilidade que tem a ver com a própria economia do cinema, ao nível dos apoios, dos subsídios, da forma como são atribuídos e de que maneira se conseguem diversificar as fontes de financiamento. Mas para mim, confesso, que aquilo que mais me interessa é a sustentabilidade do ponto de vista da educação. Como é que podemos promover a sustentabilidade das comunidades através do cinema? Isto é, o cinema enquanto instrumento de intervenção social e cultural. O cinema não é apenas um instrumento de experiência, mas, também, um instrumento de expressão. O cinema pode ser um instrumento de sustentabilidade para muitas escolas e regiões. Em 2018, em conjunto com a professora Ana Sofia Pereira, desenvolvemos um projeto numa escola secundária que consistia no uso do cinema para combater o abandono escolar e os resultados foram muito positivos. Está também em curso um novo projeto que tem como objetivo criar recursos digitais que possam fazer chegar o cinema a mais escolas por todo o país, independentemente da sua área geográfica. Isto ajuda à sustentabilidade cultural de diferentes regiões.

 

“Tenho um carinho grande pelo Manoel de Oliveira até porque tive oportunidade de trabalhar com ele num dos últimos filmes que ele fez.”

 

Um profissional da área do cinema consegue ver um filme apenas e só como espetador?

Consigo distinguir os momentos em que vejo filmes por motivos de trabalho e aqueles momentos em que sou apenas espetador. Mas, claro, há sempre um olhar crítico, que, aliás, deve existir em todos os espetadores. É muito importante sermos críticos relativamente àquilo que vemos. Não acho que o olhar crítico destrua a capacidade de fruição, bem pelo contrário: alimenta ainda mais o prazer pelo que estamos a ver, na medida em que nos vai levar a apreciar ainda mais todos os aspetos e elementos que compõem o filme. Não só experimentamos, como também compreendemos o impacto que o filme tem em nós.

 

Uma série pode ser considerada cinema?

Isso é uma outra grande discussão (risos). Diria que cinema não é, mas sim que o êxito atual das séries passa por uma evidente contaminação do cinema. Se olharmos para a forma como as séries são hoje feitas, vemos que há um cuidado acrescido com a realização, com a direção de fotografia, com a direção do som, etc. E antes não havia. As séries começaram a ter maior preocupação em utilizar uma linguagem mais cinematográfica. Portanto, há uma contaminação positiva. Mas as séries não são cinema, da mesma forma que o cinema não são séries, ainda que comecem a aparecer produtos que já se posicionam nos dois campos. E mais uma vez refiro que a lógica não é de substituição, mas de complementaridade. Oxalá se consiga alargar o espectro do número de espetadores e suscitar interesse por produtos audiovisuais variados.

 

“O cinema aproxima-nos daquilo que nunca ninguém imaginou.”

 

Algum género de cinema preferido?

Desde miúdo que tenho uma paixão por filmes de terror e do género thriller. Mas, enquanto professor desta área, tenho adquirido imensas referências diferentes e, por isso, hoje gosto de ver praticamente todo o tipo de cinema.

 

Algum filme português que o tenha marcado particularmente?

Tenho um carinho grande pelo Manoel de Oliveira, até porque tive oportunidade de trabalhar com ele num dos últimos filmes que ele fez. Gosto muito do filme Non, ou a Vã Glória de Mandar. Vi este filme enquanto aluno na universidade e marcou-me muito porque me levou a pensar sobre a identidade portuguesa, a história de Portugal, quais os seus traumas e resquícios.

 

Porque é que o cinema faz falta?

Porque tem o poder de impactar pessoas e comunidades. O cinema faz-nos descobrir não só tudo aquilo que a vida pode ser, mas, também, aquilo que somos. O cinema aproxima-nos do outro. Aproxima-nos daquilo que é estranho e daquilo que está distante. O cinema aproxima-nos daquilo que nunca ninguém imaginou. O cinema é uma janela sobre tudo aquilo que ainda não descobrimos sobre nós mesmos. Nós precisamos disso, porque quanto mais nos contraímos, menor é a probabilidade de concretizarmos todo o potencial que existe em nós.

 

 

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03-11-2022