Francisca Magano: “A Justiça Social é concretizável através de pequenas conquistas diárias.”

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Francisca Magano tem 34 anos, é natural de Aveiro e é a atual Diretora de Políticas de Infância e Juventude da UNICEF Portugal. Mudou-se para o Porto com 18 anos para estudar Psicologia na Faculdade de Educação e Psicologia, da Universidade Católica no Porto. Faculdade onde, também, se fez mestre em Psicologia da Justiça e do Comportamento Desviante. O voluntariado foi uma peça chave no seu percurso, porque abriu portas para a “área da cooperação internacional” e porque “permitiu o contacto com realidades diferentes e a compreensão do outro”. O que é que a move? A Justiça Social!

 

Desde cedo soube que queria estudar Psicologia. Qual a motivação para esta área?

Sempre houve uma vontade muito grande e muito explícita de lutar pela justiça. Tive a oportunidade de estudar sempre em escolas multiculturais e muito diversas e isso permitiu-me o contacto com diferentes realidades e algumas até muito complexas. Este contexto deixou-me sempre com vontade de lutar pelo melhor destas realidades e criou em mim uma sensibilidade grande. No fundo, nunca ponderei outra área que não a Psicologia. Quis sempre compreender o outro, sempre fui muito interessada pelas pessoas, sempre me fascinou compreender porque é que as pessoas se comportam de uma determinada maneira. Cheguei a participar naquelas sessões de orientação vocacional com o psicólogo da escola, mas sempre numa ótica de validar uma certeza que já tinha. 

 

E que se confirmou …

Sim, não há dúvidas! O engraçado é que hoje em dia olho para o que me rodeia da mesma forma. Sempre centrada na pessoa, no indivíduo e com vontade de construir a justiça social. Move-me esta vontade de trabalhar para conseguir promover lugares e relações mais justas.

 

“Entusiasmou-me o facto de poder contribuir para a própria construção do curso.”

 

Aos 18 anos sai de Aveiro e vem para o Porto para ingressar na Licenciatura em Psicologia na Universidade Católica. O que é que a motivou a fazer esta opção?

Em primeiro lugar, eu queria sair de Aveiro, mas não queria ir para muito longe. Como tenho família no Porto, pareceu-me uma boa opção. Entrei em 2006 para a Católica. As minhas primas já tinham estudado aqui e, por isso, tinha muitas referências positivas. Lembro-me que, quando vim conhecer a Católica e saber mais sobre o curso, me interessou muito o facto de ser um curso recente, com um corpo docente novo e com um programa curricular que também trazia muitas novidades. Entusiasmou-me o facto de poder contribuir para a própria construção do curso. Rapidamente tomei a decisão de que era aqui que queria ficar.

 

“Consegui que as minhas experiências de voluntariado fossem positivas e, acima de tudo, transformadoras.”

 

Qual a memória mais marcante dos seus tempos de licenciatura?

Fiz a minha primeira missão de GAS’África em 2007 e foi absolutamente marcante. Gostei tanto que voltei a repetir a experiência em 2008. Estive no Lubango, em Angola. Foi determinante e estruturante para as decisões que tomei a seguir e para o caminho que fui traçando. Nunca mais larguei a área da cooperação internacional. Foi, também, através desta experiência que acabei por me abrir ainda mais ao que a Católica tinha para me oferecer. Pude conhecer pessoas das outras faculdades da Católica no Porto e passei a estar mergulhada em diferentes atividades e sessões de formação. O tempo que eu passava na Católica ia muito para além do tempo que passava nas aulas e, por isso, a experiência foi muito enriquecedora. Fiquei muito desperta para os temas da justiça e do comportamento desviante e acabei por ingressar, depois de ter terminado a minha licenciatura, no Mestrado em Psicologia da Justiça e do Comportamento Desviante.

 

De que forma é que o voluntariado transformou a sua vida?

Para além de ter participado em duas missões do GAS’África, também participei em voluntariado regular numa casa de acolhimento. Foram duas experiências muito diferentes que me permitiram o contacto com realidades distantes da minha e foi essencial para o meu percurso e para aquilo que sou hoje. Todas as experiências foram marcantes e todas me colocaram numa espécie de conflito interior que me ajudou a olhar para o mundo por outra perspetiva. Na altura, enquanto estudante de psicologia, também foi muito bom, porque pude contactar com muitos dos temas que abordávamos nas aulas. Depressa percebi que o que aprendia não estava, afinal, só nos livros e nos artigos científicos. O voluntariado pôs-me em contacto com muitas dúvidas, questões essenciais e colocou-me a refletir e a querer agir em prol de uma justiça social. No fundo, foi sempre isto que me moveu e é isto que ainda hoje me move. Mais importante do que o voluntariado que fiz, foi também o acompanhamento que fui tendo e o esforço que fiz por ir compreendendo o que ia sentindo e todas as minhas inquietações. Só desta forma é que somos capazes de dar sentido a estas experiências. Consegui que as minhas experiências de voluntariado fossem positivas e, acima de tudo, transformadoras.

 

“Estou na UNICEF há 8 anos e sinto-me, verdadeiramente, realizada.”

 

Viveu 3 anos em Londres. O que é que destaca dessa sua experiência?

Comecei por ir para Londres, enquanto voluntária, para uma organização que acompanhava jovens estrangeiros. Mais tarde comecei a trabalhar numa outra organização que tinha projetos de educação na África subsariana. Eu geria os programas de educação e a relação com os parceiros em sete países da África subsariana. Essencialmente, mudo-me para Londres para ir à procura de desafios (risos). E confesso que foi isso que encontrei, apesar de, também, ser uma cidade acolhedora. Foi um grande desafio trabalhar noutra língua e numa organização que integra pessoas de diferentes partes do mundo. Para além disso, era uma organização pequena, mas com uma capacidade de escala e de impacto muito considerável. A uma dada altura estava a gerir um orçamento muito significativo e a tomar decisões sobre vários projetos. Cresci muito nestes 3 anos em Londres.

 

Porque é que voltou para Portugal?

Eu sempre disse que voltaria para Portugal se surgisse uma oportunidade nas Nações Unidas, concretamente na UNICEF, e acabou por acontecer. Estou na UNICEF há 8 anos e sinto-me, verdadeiramente, realizada.

 

Qual é a missão da UNICEF Portugal?

A UNICEF é o Fundo das Nações Unidas para a Infância e trabalha para defender e promover os direitos da criança em todo o mundo. Lutamos para que todas as crianças em qualquer lugar onde estejam, onde quer que vivam, tenham os seus direitos assegurados. Em Portugal, a missão é a mesma. Não temos programas de intervenção, como existe em mais de 150 países, e, por isso, aqui trabalhamos para a influência de políticas públicas e recolha de fundos os programas de terreno.

 

Atualmente, ocupa o cargo de Diretora de Políticas de Infância e Juventude. Foi sempre esta a função que ocupou ao longo destes 8 anos?

Não, quando entrei para a UNICEF integrei um programa específico: o programa das Cidades Amigas das Crianças. Entrei com a missão de relançar esse programa com as autarquias locais. Passados alguns anos é que fui convidada para criar o departamento de advocacy e políticas públicas. Somos sete pessoas neste departamento e a minha função é coordenar e dirigir a equipa. Trabalhamos diretamente com o Governo num conjunto de políticas em matéria de direitos da criança e com várias entidades públicas e privadas num conjunto de áreas prioritárias para as crianças, nomeadamente relacionadas com a pobreza infantil e com a integração de crianças migrantes em contexto escolar
na sociedade. Em suma, trabalhamos para capacitar os profissionais na área dos direitos da criança e influenciar para a adoção e implementação de melhores políticas públicas.

 

“A UNICEF não se quer eternizar nas respostas, porque quer que os Estados estejam capacitados para responder.”

 

Qual é o maior desafio do seu trabalho?

É ter a capacidade para responder aos desafios emergentes e ser, também, capaz de antecipar problemas e gerir a resposta que damos, tendo em conta os recursos existentes. Outro desafio é o do impacto, área sobre a qual a Católica também tem produzido muito conhecimento. Temos trabalhado muito para medirmos com rigor o impacto do nosso trabalho. Todos estes desafios me inquietam, mas é uma inquietação positiva (risos). Para além disto, começamos por ser uma equipa pequena e agora já somos sete elementos. Houve um crescimento exponencial da equipa que acarreta também um crescimento das expectativas relativamente ao trabalho que desenvolvemos.

 

Porque é que em Portugal a UNICEF não atua ao nível da intervenção direta com as crianças?

É um orientação da organização a nível mundial que reconhece que países como Portugal têm um Estado que é capaz de dar resposta e daí não haver necessidade de programas de intervenção diretamente promovidos pela UNICEF. A UNICEF admite que o Estado é capaz de os implementar. Claro que isto não dispensa uma colaboração direta com o Governo. É sempre definido um plano estratégico de atividades e trabalhamos sempre numa lógica de capacitação e sustentabilidade. A UNICEF não se quer eternizar nas respostas, porque quer que os Estados estejam capacitados para responder. O nosso papel passa, também, pela monitorização e avaliação dos compromissos do Estado em matéria de direitos das crianças.

 

“A pobreza infantil tornou-se numa prioridade política.”

 

Estamos mais despertos hoje em dia para os problemas relacionas com a pobreza infantil e com a importância dos direitos da criança?

Ainda há muito para fazer, mas desde que entrei na UNICEF, há oito anos, que, claramente, que a pobreza infantil se tornou numa prioridade política. Já era um problema social, mas não era encarado como prioridade e agora é. Para além disso, também tem de ser um compromisso de todos, de toda a sociedade civil, na qual se enquadra a UNICEF e outros diferentes atores. Na UNICEF estamos empenhados em acompanhar o trabalho realizado e todos os compromissos assumidos, queremos que se reflitam em medidas concretas e em mudanças efetivas na vida das crianças, em particular daquelas que estão em situações mais vulneráveis.

 

Já teve oportunidade de referir que a move a vontade de promover e construir a justiça social. Quanto dessa sua vontade pode ser uma utopia? 

Não acho que a justiça social seja uma utopia, porque acredito que é importante que todos nos sintamos comprometidos com uma missão que contribua para a construção da justiça. É um trabalho sempre inacabado, mas não é assim a vida? Tudo aquilo que sonhamos para a nossa vida tem sempre um quê de inatingível e de pouco realizável, mas, também, é isso que nos dá alento e que alimenta a vontade concreta de atingir certos objetivos. A Justiça Social é concretizável através de pequenas conquistas diárias e, por isso, não considero que seja uma utopia. Ou se o é, deixe-me dizer que é uma “utopia realista”, na medida em que há formas de estarmos cada vez mais próximos de a atingir, ainda que nunca de forma plena.

 

Que livro recomendaria a alguém que se interessa pela área da defesa dos direitos da criança?

Um livro que me marcou muito é sobre crianças soldado. A Long Way Gone: Memoirs of a Boy Soldier de Ishmael Beah. Fala sobre a experiência real de uma criança soldado, que viu os seus pais e irmãos morrerem na guerra, e com o apoio da UNICEF conseguiu escapar e reconstruir a sua vida. Ainda que aborde uma realidade específica, fez-me sentir e refletir muito sobre a dureza da guerra para a criança e o papel que podemos ter na transformação das vidas de muitas crianças.

 

pt
12-01-2023