Bento Amaral: “A convivência com a diferença é essencial.”

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Bento Amaral é alumno da Escola Superior de Biotecnologia e leciona a disciplina de Análise Sensorial na Pós-Graduação em Enologia. Dedica a sua vida ao Vinho e lançou, recentemente, um projeto que pretende promover e concretizar a inclusão. Chama-se Humanwinety e promete, através da educação, ser um meio ativo na capacitação para uma integração no mercado de trabalho de minorias que continuam a sofrer de exclusão. Em 2005, sagrou-se campeão mundial de vela e em 2008 representou Portugal nos Jogos Paralímpicos. Inquieto por natureza e sempre cheio de ideias, Bento Amaral afirma que “temos de aprender a descomplicar a vida. Insistimos, constantemente, em limitarmo-nos.”

 

É alumno da Católica. Estudou Engenharia Alimentar, na Escola Superior de Biotecnologia. O que é que o motivou a escolher esta área?

A minha ideia inicial era seguir Engenharia Química, mas, quando eu estava no 12º ano, houve um professor da ESB que me falou da licenciatura em Engenharia Alimentar. Lembro-me que me disse que era um curso muito interessante e eu decidi arriscar. Na altura, frequentei aqui o ano zero e gostei muito da escola. Francamente, confesso que foi a melhor opção que fiz. Era uma área de muitos horizontes.

 

“Foi em Bordéus que me apaixonei pelo mundo dos vinhos.”

 

O que é que mais o marcou durante os seus anos de estudante?

Há uma coisa que se destaca de todas as outras. É a amizade. Tenho muitos amigos da Católica que levei para toda a vida. São dos grandes amigos que tenho. Gente extraordinária com quem me identifico muito. Para além disto, marcou-me a abrangência do plano curricular e os professores. Foram anos muito bons. As disciplinas que compunham o plano curricular do curso eram de uma abrangência enorme: gestão, bioquímica, física, genética, biologia, matemática, marketing, entre outras. Esta diversidade de conhecimentos e os professores de excelência permitiam uma ótima preparação dos alunos para as exigências do mercado de trabalho. As instalações, também, eram de elevado nível e no último ano havia uma oportunidade de estágio no estrangeiro. Isto aliciou-me imenso e era um grande entusiasmo para mim.

 

Acabou por fazer o seu estágio em Bordéus …

E foi em Bordéus que me apaixonei pelo mundo dos vinhos. Antes do estágio reconhecia que era uma área interessante, mas não passava disso. O que me deslumbrou particularmente foi o mundo das provas de vinho, o ambiente que se vive e, claro, toda a ciência envolvida. Para além disto, o mundo dos vinhos tem uma parte muito emocional que me entusiasma imenso.

 

“A memória olfativa é uma ferramenta importantíssima.”

 

Para além do paladar, o que é que também é imprescindível quando falamos em provar um vinho?

Uma das coisas que me apaixonou no mundo de vinho foi ter descoberto o sentido do olfato e o poder que ele tem. É deslumbrante. Quando estava em Bordéus, lembro-me de ir a uma perfumaria cheirar todos os perfumes para treinar o nariz (risos). Quem já é um provador treinado percebe a partir do olfato como é que o vinho se vai desenvolver na boca.

 

Registamos os cheiros na nossa memória?

A memória olfativa é uma ferramenta importantíssima e treina-se de muitas maneiras diferentes. Existem umas caixas, conhecidas como o Nariz do Vinho, que reúnem 64 aromas diferentes e que servem para se treinar o olfato. No fundo, todas as pessoas conseguem cheirar um vinho, todas vão dizer que o vinho cheira a alguma coisa, mas o desafio está em se conseguir distinguir e para isso a memória olfativa é fundamental. O sentido de olfato para mim foi uma verdadeira descoberta. Quando somos crianças relacionamo-nos com o mundo metendo as coisas na boca e só depois é que vem a visão. Mas antes de tudo vem o olfato e talvez não seja por acaso que às vezes dizemos que “cheira a coisas de infância”. O mundo já comunicava connosco através do olfato. Eu fui redescobrir este olfato e estas sensações através dos aromas.

 

Aborda isso nas aulas de Análise Sensorial que leciona na Pós-Graduação em Enologia da ESB?

Sim, ajudo os estudantes a treinar o olfato, porque é uma componente muito importante para quem prova vinho. As sessões costumam ter uma pequena componente teórica, mas são essencialmente aulas práticas. As sessões costumam dividir-se em vinho branco, tinto, rosé, espumante, etc. Atualmente, também fazemos com vinho do porto e chocolate e ainda outras de vinhos e queijos.

 

Também se treina provando maus vinhos?

As primeiras duas sessões são praxes. Começamos por provar soluções de ácido, doce, salgado e amargo para compreender a interferência. De seguida, começamos a provar dezassete vinhos com defeito para terem a perceção de tudo. Só a partir daí é que vão ser capazes de começar a apreciar, também, as qualidades. Seja a provar vinho bom ou mau (risos) tento sempre transmitir a paixão que tenho pelos vinhos. É isto que me realiza profissionalmente e eu gostaria imenso que os meus estudantes também tivessem esta oportunidade de realização.

 

“Queremos desenvolver novas realidades para que estas pessoas com necessidades especiais possam aprender e interagir com o mundo.”

 

Como avalia a posição que Portugal ocupa na área dos Vinhos?

Não considero que estejamos a lutar, neste momento, pelo primeiro ou segundo lugar do campeonato. Diria que estamos ali entre o terceiro e o quarto lugar. Não há dúvida de que o nosso conhecimento tem aumentado, mas falta sabermos comunicar. Há muito a percorrer neste caminho de sabermos comunicar e vender os nossos vinhos e a sua qualidade.

 

Recentemente, deixou o Instituto de Vinhos do Douro e do Porto, uma relação de muitos anos, para se dedicar a um novo projeto na área dos vinhos e da inclusão. Em que consiste?

A minha nova menina dos olhos chama-se Humanwinety. Surge numa altura em que sentia que precisava de crescer profissionalmente e que desejava alguma mudança na minha vida. Através do vinho pretendemos ajudar na integração e na capacitação de pessoas que não têm as mesmas possibilidades que a maioria. Vamos proporcionar formação não só a nível nacional, mas também internacional, nas áreas da enologia, do enoturismo, da hotelaria, da comercialização de vinhos, do atendimento ao cliente, entre outras. Queremos trabalhar não só a componente técnica, mas, também, as soft skills. Para conseguirmos ter a abrangência que desejamos, a formação será feita online e irá atender ao tipo de limitações que as pessoas apresentam. Temos também diferentes parceiros que vão possibilitar a realização de estágios. Tudo isto é orientado para grupos minoritários, quer se trate de minorias étnicas, raciais, de deficiências físicas e cognitivas, entre outras. No fundo, o projeto é direcionado para todas as pessoas que, por determinados motivos, não tenham a mesma facilidade no acesso à formação e integração na sociedade. Queremos promover a inclusão de todos na sociedade, através de formação adequada que permita a integração no mercado de trabalho.

 

O que é que ambiciona para o projeto?

Que daqui a uns anos haja mais gente que pertença a minorias inserida no mercado de trabalho. Estou certo de que desta forma teremos um mundo melhor. Quero que cada pessoa encontre o seu lugar. Um mundo melhor é um mundo mais diverso e um bom exemplo disso é que se eu, que estou numa cadeira de rodas elétrica, fizer uma visita de enoturismo a um grupo de pessoas, não tenho dúvida de que vai ter um impacto muito positivo nelas. Não só vão compreender que tenho uma vida como a dos outros, mas, também, as vai fazer ter melhor perceção sobre a empresa em questão e sobre o seu trabalho. Gostava, também, daqui a uns tempos, de utilizar tecnologia de realidade aumentada ao serviço de casos do espetro de autismo, dos mais simples aos mais complicados. Quero perceber de que forma é que através destas ferramentas conseguimos promover e desenvolver as aprendizagens e a pedagogia. Queremos desenvolver novas realidades para que estas pessoas com necessidades especiais possam aprender e interagir com o mundo.

 

Ideias não lhe faltam …

São uma data de ideias que foram sendo guardadas ao longo do tempo. Para além disso, gosto imenso de ler e a leitura também me faz refletir e me faz ir juntando algumas peças que depois acabam por resultar em ideias para pôr em prática.  

 

“A palavra educação tem na sua origem o conceito de desabrochar, de tirar o melhor da pessoa.”

 

Em Portugal já estamos mais conscientes para a importância da inclusão?

Estou numa cadeira de rodas há 28 anos e noto uma diferença enorme. Acho que as coisas começam a ficar mais equilibradas, mas claro que não estão resolvidas. Hoje em dia, há uma maior consciência para a importância destes temas. Estamos a destruir barreiras e, felizmente, a quebrar certos preconceitos.  

 

Uma coisa é acessibilidade e outra é inclusão. De que forma é que é importante fazermos a sua distinção?

Quando pensamos em acessibilidade pensamos muitas vezes em barreiras físicas. No fundo, é dar acesso a algo, mas uma coisa diferente é permitir que as pessoas a quem já foi dado acesso tenham a verdadeira capacidade e oportunidade de demonstrar todas as suas potencialidades. Aqui, sim, falamos de uma verdadeira inclusão. Em suma, é aquilo que a Humanwinety quer. Não só queremos dar acesso ao mercado de trabalho, mas que, aquando nele inserido, as pessoas possam desenvolver-se e mostrar todas as suas capacidades. É por isso que a Educação é muito importante. É através dela que podemos atingir este objetivo. A palavra educação tem na sua origem o conceito de desabrochar, de tirar o melhor da pessoa. É isto que queremos fazer. Todos nós somos diferentes e cada um na sua diferença tem capacidades e potencialidades únicas.  

 

Como é que se educa para a inclusão?

A convivência com a diferença é essencial. Aqui nas aulas, por exemplo, é engraçado como os alunos se ambientam e me ajudam e me conduzem na minha cadeira de rodas de um lado para o outro. Quando falamos de inclusão tem de se falar de relação. Só em relação e em contacto com realidades diversas é que aprendemos a incluir e a viver em permanente inclusão e integração. Lembro-me que há uns anos uma sobrinha minha escreveu uma redação onde algures tinha de me descrever. Descreveu-me como o tio que tinha cabelos cinzentos e em momento algum referiu a minha cadeira de rodas.

 

“Depois do acidente achava que nunca mais ia conseguir fazer vela. Foi uma realização muito grande perceber que afinal era possível.”

 

Foi aos 25 anos que teve o acidente que o colocou tetraplégico. Como é que um momento trágico como esse pode ser superado?

Eu já era um otimista por natureza (risos). Há aqui uma palavra importante e que comanda tudo: o amor. Muitas vezes aplicamos mal esta palavra. Eu posso dizer que fui profundamente amado pela minha família e pelos meus amigos e, também, por todos os que cuidaram de mim, como os vários profissionais de saúde. Todos me trataram como sendo o Bento e não como o rapaz cuja vida tinha acabado aos 25 anos. Isto fez a diferença toda para que eu não deixasse de acreditar em mim.

 

Praticava vela antes do acidente, mas foi depois que se sagrou campeão mundial em 2005 e que em 2008 representou Portugal nos Jogos Paralímpicos.

Depois do acidente achava que nunca mais ia conseguir fazer vela. Foi uma realização muito grande perceber que afinal era possível. Antes de ter o acidente, a minha ideia era ir fazer vinho para a Austrália. Ironicamente, depois do acidente fui à Austrália, não para fazer vinho, mas precisamente por ser deficiente e por praticar vela. A ironia da vida é extraordinária. As coisas que achamos que nos limitam são supérfluas Temos de aprender a descomplicar a vida. Insistimos, constantemente, em limitarmo-nos. Andamos a correr atrás de felicidade e não paramos para podermos ser alcançados por ela.

 

 

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27-10-2022